Segundo, Miguel Torga: "Deixar saudades é
o único legado que não traz complicações aos herdeiros."
Esta citação é realista e confirma o que é de mais importante do ser humano - o lado racional, o comportamento diferenciado, o desapego ao materialismo e a contribuição para a construção de uma sociedade mais HUMANA!
Deixo um artigo de João Miguel Tavares (apesar de não simpatizar com este "rapaz" valorizo a sua perspectiva em relação ao tema "heranças").
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Deixem-me
então regressar ao fascinante tema das heranças,
para tentar explicar por que me parece que ele tem tanto a ver connosco, apesar
de não sermos milionários. Todos temos ou tivemos pais, muitos de nós têm
filhos, e portanto a questão daquilo que podemos receber de uns ou que iremos
deixar aos outros é um tema importante. E sobre isso eu sou muito
Buffett-gatiano: as heranças deveriam ser encaradas por cada um de nós como uma
dádiva, e não como um direito.
Não
me refiro a questões legais, obviamente. Refiro-me a questões morais. Quer
dizer: não sei por que raio tanto filho está convencido que tem um direito
inalienável ao património dos pais, para o qual, regra geral, nada contribuiu.
Os nossos pais têm a obrigação de nos oferecer a melhor educação possível, com
certeza, mas a partir daí não têm obrigação de nos deixar mais nada.
O
património é deles. Se quiserem enfiá-lo numa fundação para combater a malária,
como os Gates, estão no seu direito. Se quiserem oferecê-lo à igreja, estão no
seu direito. Se quiserem fazer um testamento em que os filhos não são tratados
por igual, também estão no seu direito. Aquilo é deles. Não é nosso.
Infelizmente,
não deve haver quem não tenha assistido, na sua família ou em famílias
próximas, a conflitos enormes em torno de heranças. Não precisam de ser
latifúndios - às vezes basta ser a partilha das colchas da avó. Esses conflitos
atingem frequentemente níveis de violência absurdos - há irmãos, sobrinhos,
primos que nunca mais se voltam a falar.
Tenho
um amigo que acha que as heranças são apenas o gatilho que faz disparar
conflitos que estavam latentes, e que encontram ali um campo fértil para serem
finalmente verbalizados. Ele terá alguma razão. Mas não acho que tenha a razão
toda - há gente que efectivamente enlouquece perante a visão de um serviço de
cozinha com 60 anos. Há quem antes das partilhas se desse muito bem e deixe de
se dar.
Eu
também assisti a isso quando era novo, e jurei a mim próprio que jamais
aconteceria comigo - ainda que eu tivesse que oferecer tudo ao meu irmão e me
limitasse a manter na minha posse a meia-dúzia de livros de banda desenhada que
já lhe roubei entretanto. Nada justifica aquele género de discussões - não
foi pelo nosso mérito que a casa, o carro ou os talheres de prata foram
conquistados. E se uma coisa não tem o nosso mérito, nem o nosso esforço, nem a
nossa dedicação, não pode ser, moralmente, uma exigência nossa.
Ah,
e tal, a lei diz que sim. Esqueçam a lei. É evidente que mais vale o património
ficar para os filhos do que para o Estado. Os meus pais têm uma relação melhor
comigo do que com a Maria Luís Albuquerque. Mas quando a minha atitude deixa de
ser de dádiva para passar a ser de dever, invocando para mim o direito a certas
coisas que eu não conquistei, cada desacordo com um familiar produz um
sentimento semelhante ao de me estarem a assaltar a casa.
Não,
não, não. Não faz sentido. A partir do momento que os meus filhos deixarem de
ser menores de idade e abandonarem a minha dependência, o que pretendo
ensinar-lhes é que aquilo que de melhor tinha para lhes oferecer - a sua
educação - já está oferecido. A partir daí, desemerdem-se. Façam-se à vida.
Conquistem as coisas pelo seu próprio mérito.
De
resto, pretendo fazer com o meu património o que muito bem me apetecer. E se
algum dia, depois de bater a bota, os vir discutir acerca de loiças ou pratas
ou livros (enfim, acerca de livros ainda perdoo), hei-de reerguer-me da tumba
para lhes azucrinar a vida. Vão trabalhar, malandros. Cada um tem a sua vida
para viver. A obsessão com as heranças é uma canibalização da vida dos nossos
pais. Deixem-nos em paz e vão dar dentadas para outro lado.